sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O status do Protocolo de Nagoya


De forma simplificada e quase filosófica, o Protocolo de Nagoya é o conjunto de regras e diretrizes internacionais que regula o acesso aos recursos genéticos para o benefício da humanidade. Questões fundamentais como segurança alimentar, saúde pública e conservação da biodiversidade, serão afetadas de acordo com o grau de adesão dos governos, das empresas e das comunidades tradicionais ao protocolo. Com o teor das decisões aqui na COP11, é possível afirmar que ele já passe a valer a partir de 2014.
Refletido em seu primeiro artigo, o objetivo é a “distribuição justa e equitativa dos benefícios oriundos dos recursos genéticos, incluindo o acesso apropriado a tais recursos e também a apropriada transferência de tecnologias relevantes, levando em consideração todos os direitos sobre esses recursos e tecnologias, e também o financiamento apropriado, contribuindo assim para a conservação da diversidade biológica e o uso sustentável de seus componentes”.
Com 36 artigos acordados mutualmente entre os países o protocolo foi assinado na Convenção de Biodiversidade em 2010 na cidade de Nagoya no Japão, daí o nome. Os EUA não signatários na Convenção também não o assinaram e, portanto, não se sabe como se enquadrarão nas regras internacionais. A divisão de interesses dos países desenvolvidos, que em geral já perderam grande parte da sua biodiversidade e possuem tecnologias e capital para obter valor dos recursos genéticos de um lado, e os países menos desenvolvidos, ricos em biodiversidade e pobres em tecnologia e capital de outro, fez com que as negociações se arrastassem por quase duas décadas.
No entanto, a efetiva entrada em vigor do Protocolo de Nagoya depende da ratificação de pelo menos 50 países. Como cada país tem um processo interno e distinto de ratificação, em geral via uma legislação nacional que segue as diretrizes do Protocolo, foi importante as decisões e reflexões ocorridas aqui na Índia. Segundo o plano acordado, só mais uma reunião do Comitê Intergovernamental do Protocolo de Nagoya deve ser realizada antes de sua adoção prevista para a próxima reunião da Convenção de Biodiversidade que será realizada na Coréia de Sul em 2014.
Poucos países podem se beneficiar tanto como o Brasil de um conjunto de regras que estimule pesquisa e inovação para gerar valor da nossa incomparável biodiversidade. O problema é que o ambiente regulatório é hoje absolutamente restritivo e desencorajador para investimentos na área. Logo se faz necessária uma mudança radical na lei atualmente em vigor (na verdade um medida provisória) que trata todo pesquisador como um potencial biopirata.
Felizmente está em curso um processo de revisão da legislação, envolvendo reuniões periódicas entre o Governo Federal e os mais distintos setores interessados: farmacêuticos, biotecnologia, cosméticos, desenvolvedores de sementes, higiene e beleza, entre outros. Como cada setor faz um uso distinto dos recursos genéticos, é necessário que tal legislação seja flexível o suficiente para não coibir inovação e garanta a distribuição dos benefícios econômicos entre usuários e provedores.
Assim sendo, espera-se que o Congresso Nacional aprove a nova lei e permita o Brasil ratificar o protocolo internacionalmente, influenciando que ele entre em vigor já em 2014.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Uma agenda oculta na Convenção de Biodiversidade

Imaginem se fôssemos capazes de alterar o nível  de radiação solar que entra no planeta a cada instante. Ou capazes de mudar a composição das nuvens de forma as tornar ainda mais brancas. Ou ainda colocar espelhos no espaço para que estes refletissem de volta parte da luz do sol!
Ficção científica, delírio, ou ciência?
Bem vindos ao século XXI, onde nossa capacidade de alterar os ciclos naturais da Terra está deixando de ser apenas um subproduto do modelo de desenvolvimento adotado, e se tornando uma ação consciente em busca de “tecnologias” capazes de transformar alguns ciclos naturais, que levaram bilhões de anos para permitir a vida por aqui, moldando-os de acordo com nossas preferências.
Preferências de quem? Alterar em que magnitude? Em quais circunstâncias? De forma definitiva? Sob quais cuidados e supervisão? A partir de quais análises de riscos? Com o consentimento de quem?
Escrevo sobre a Geoengenharia, um conceito ainda em busca de uma definição precisa, mas que já provoca uma série de indagações éticas, econômicas e geopolíticas. Nos próximos anos e décadas será tema de debates calorosos entre as sociedades. A Geoengenharia será para o século XXI o que a fissão nuclear (incluindo seu subproduto a bomba atômica) foi para o século XX.
Segundo a Convenção de Biodiversidade, a Geoengenharia é entendida hoje como uma “intervenção deliberada no ambiente planetário, em escala suficiente para contrapor os efeitos negativos das mudanças climáticas causadas pela humanidade[1]”. A academia real de ciência da Inglaterra publicou um estudo[2] em 2009 no qual dividiu a Geoengenharia climática em dois tipos:
            1. Métodos de remoção de CO2 da atmosfera: em que o principal, e mais contraditório, exemplo é fertilizar os oceanos com bilhões de toneladas de nutrientes (ferro, fósforo, nitrogênio) estimulando assim o crescimento de um tipo de alga que absorve CO2 depositando-o no fundo do mar quando morrem.
            2. Métodos de gestão da Radiação solar: nesse caso a ideia não é retirar da atmosfera os gases de efeito estufa que há séculos estamos emitindo, mas sim atacar diretamente a “fonte do problema” do aquecimento global, ou seja, diminuir a intensidade de radiação solar que entra no sistema a todo instante. Como? Entupindo a estratosfera com aerossóis que refletem de volta a luz do sol, ou mudando a composição das nuvens de modo as tornar mais refletoras, ou ainda instalando espelhos no espaço.
A Convenção para a Diversidade Biológica é hoje o principal fórum de deliberação coletiva sobre a possibilidade de adotar ou mesmo sobre a mera possibilidade de se realizar pesquisa em Geoengenharia. Em Nagoya em 2010 os países acordaram em estipular uma moratória para o teste e desenvolvimento dessas tecnologias.
A famosa decisão X/33 foi bastante comemorada por diplomatas e ativistas, mas não impediu, e não está impedindo que testes continuem a ser realizados. Poucos meses atrás, em Julho desse ano, uma empresa Canadense despejou 100 toneladas de sulfato de ferro no Pacífico Norte, criando uma colônia de algas que ocupou uma área equivalente a um milhão de hectares (metade do Estado de Sergipe).
Existem provas de que uma série de outros estudos e testes foram realizados nos últimos anos. Não só são um desrespeito às leis internacionais, como também um possível atentado à vida no planeta[3]. As consequências indiretas de um experimento como esse são absolutamente desconhecidas, mas há evidências de que alterações no nível de radiação solar poderiam, por exemplo, levar a mudanças significativas no regime de chuvas aqui nos trópicos.
Aqui na Índia depois de intensas negociações a moratória foi renovada, mas começa a ficar claro que esse fórum não é suficiente para implementá-la, e um intenso debate sobre governança começa a se formar em torno do tema. Um dos argumentos é a que Convenção traz como princípio básico a autonomia de seus territórios (jurisdição), mas no caso de qualquer teste ou uso de uma modalidade de Geoengenharia, os efeitos positivos ou negativos se espalhariam muito além das fronteiras nacionais.
O argumento mais utilizado pelos governantes de países e instituições a favor dessas tecnologias é que elas são a maneira mais rápida de se resolver o problema das mudanças do clima, servindo como um a desculpa perfeita para adiar a implementação de medidas reais como redução das emissões e investimento em adaptação.
Acima de tudo é uma questão militar. A possibilidade de acessar recursos militares quase infinitos é uma grande tentação para cientistas em busca de financiamento para suas pesquisas. Já os militares entendem bem que a “possível” capacidade de controlar a natureza e o clima é a forma mais absoluta de poder. Não dá para imaginar esse cenário de “guerra nas estrelas” sem o envolvimento direto do exército de países como os EUA e China. Não por acaso, é comum ver diplomatas dos EUA participando de todas as reuniões sobre Geoengenharia aqui na COP, mesmo sendo o único país do mundo que não ratificou a Convenção de Biodiversidade.
O mínimo que podemos cobrar enquanto cidadãos desse planeta é transparência absoluta no que tange a Geoengenharia. A combinação de ciência e recursos militares em propósito de interesses obscuros pode ser fatal.
Nessa encruzilhada entre valores éticos e morais com o papel da ciência num mundo cada vez mais quente, não posso deixar de citar um parágrafo do livro o Humano, a Orquídea e o Polvo, de Jacques Cousteau:
“Se é para morarmos em segurança nesse nosso único globo, temos que reconhecer que precisamos dos cientistas para nos dar a verdade e dos humanistas para nos dizer o significado dessa verdade. Precisamos dos cientistas para nos proteger da natureza, e dos humanistas para nos proteger de nós mesmos”.


[1] CBD technical series on the impacts of geoengeneering on Biodiversity.
[2] The Royal Society (2009): Geoengeneering the Climate: Science, governance and uncertainty:

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Investimentos privados em biodiversidade


A insuficiência de recursos financeiros aparece sempre como a desculpa número um dos países para justificar a incapacidade de atingirem as metas impostas coletivamente para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade.
Com dois dos dez anos que temos para atingir as metas de AICHI já passados, e dado que não há saída no curto prazo para um revigoramento da economia mundial, insistir em condicionar a conservação dos nossos recursos naturais apenas com financiamento governamental, principalmente por doações internacionais, é uma absoluta perda de tempo. Perder tempo no ritmo em que destruímos nossos habitats e dizimamos as espécies que habitam esse mesmo planeta é um luxo que não pode ser suportado.
É por isso que uma ideia aparentemente óbvia vem ganhando cada vez mais espaço nesses fóruns internacionais. É a ideia de transformar por completo o ambiente regulatório (leis, subsídios, incentivos fiscais) para que esse seja um indutor de investimentos em conservação ao invés de inibidor.
Num ambiente ideal, o setor privado têm regras claras e perspectivas concretas de retorno. Só assim estaria disposto a realizar investimentos na escala necessária, complementando o cada vez mais escasso recurso governamental para a tarefa.
Mas assim estamos comoditizando a natureza, dizem uns. Outros, preferem o termo “mercantilização da vida”, e uma solução efetiva transforma-se num debate ideológico do século passado. O setor privado passa então a ser tratado como capitalista desalmado, e não como um indutor de inovação, pesquisa e desenvolvimento. A questão fica ainda mais complexa num mundo onde empresas multinacionais tem como principal acionista o governo de seus países de origem, as SOE (State Owned Enterprises) para usar a termologia em inglês. Desnecessário dizer que as chinesas são as mais representativas.
No Brasil, a região amazônica é muito ilustrativa dessa lógica que inibe investimentos, a não ser investimentos fora do sistema formal da economia que diretamente causam mais desmatamento e perda de Biodiversidade.
Para não fugir do tema da conferência, vejam a questão da Lei de acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais associados. No ritmo atual de nossas pesquisas passaremos os próximos 800 anos somente para catalogar as espécies de animais e plantas [ainda existentes] na Amazônia. A lei é na verdade um medida provisória de 2001 e que basicamente trata qualquer pesquisador, da academia ou das empresas, como um potencial biopirata.
Felizmente o governo brasileiro vem reconhecendo que essa é uma questão fundamental para o desenvolvimento sustentável do país. Participei de um debate aqui em Hyderabad promovido pela Iniciativa Brasileira de Negócios e Biodiversidade representando o MEBB , um dos fundadores da iniciativa ao lado o CEBDS, CNI e Instituto Life. O debate contou também com a presença do secretário de biodiversidade e florestas do ministério do meio ambiente.
Ele descreveu o processo ativo de revisão das principais legislações de incentivo à conservação, entre elas: 
  • Novo código florestal: aprovado essa semana e agora contendo um capítulo específico de incentivo à conservação, trazendo a possibilidade de compenações, e definindo créditos de carbono.
  • O processo de revisão do PL 792/2007 sobre pagamentos por serviços ambientais
  • A revisão da MP de acesso aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais para transformá-la numa lei clara, objetiva e que induza investimentos
Cobrei-o por não mencionar a Estratégia Nacional de REDD+, que também está em elaboração, mas nesse caso pela secretaria de mudanças climáticas e qualidade ambiental.
“Essa também” , respondeu o secretario de florestas e biodiversidade, “mas nesse caso não estou autorizado pelo Itamaraty a discutí-la aqui na COP11”, esquivou-se.
Não aproveitar as florestas para juntar as agendas de clima e biodiversidade me parece um erro estratégico grave do nosso ministério de relações exteriores, principalmente no que diz respeito a investimentos na Amazônia. Reconhecer as capacidades de uma iniciativa privada empreendedora e disposta a mobilizar recursos para conservação e redução do desmatamento deve ser tratado como prioridade na pauta de desenvolvimento do Brasil.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A Biodiversidade vista da Índia

Escrever da conferência das Nações Unidas sobre biodiversidade daqui da Índia é um convite à reflexão sobre o impacto da população no meio natural, e nos sistemas e interações que garantem a vida nesse planeta. Um país onde moram um bilhão e duzentos milhões de indivíduos, e tem um território de aproximadamente um terço do nosso, serve como um bom exemplo para demostrar um fórmula simples para medir esse impacto. Impacto = PopulaçãoxAtividadexTecnologia. Na Índia a população é crescente, o nível de atividade é baixo (principalmente se medido em termos de PIB percapta), e a Tecnologia é direcionada para atividades predatórias, basta lembrar que 70% de sua energia depende da queima de combustíveis fósseis. O resultado é muito impacto.
A mesma fórmula aplicada a cada país presente aqui nas negociações dá resultados muito diversos, e daí a dificuldade de conciliar os interesses daqueles que estão aqui representados. A reunião das partes (COP11) acontece na cidade de Hyderabad, símbolo da Índia de tecnologia avançada, principalmente em computação, às vezes até chamada de Cyberabad.
Os dois temas mais importantes na agenda desse ano é o chamado Plano Estratégico 2011-2020, incluindo as 20 metas definidas em 2010 no Japão, e as regras para adoção Protocolo de Nagoya, previsto para entrar em vigor em 2015 e que regulamentará o acesso aos recursos genéticos e distribuição de seus benefícios.
O Brasil fez um trabalho considerado bastante avançado em relação aos outros países no que se refere às metas, as tais Metas Aichi.  Os trabalhos realizados por uma ampla iniciativa chamada “Diálogos para Biodiversidade” são a prova disso. Esse ano é esperado que a maioria dos países traga a situação da adaptação das metas aos seus contextos nacionais. O problema é que na atual situação da economia global, na qual os países até então considerados ricos estão maciçamente endividados, fica difícil conceber um cenário de doações aos mais pobres para que estes implementem suas respectivas metas.
Já em relação ao protocolo de Nagoya, ele ainda depende de uma ratificação por parte do nosso Congresso e para isso terá antes que aprovar uma lei nacional. Reuniões consultivas entre o Governo Federal e diversos grupos interessados, como o socioambiental, o agronegócio, as empresas de biotecenologia, as farmacêuticas e de cosméticos, vêm acontecendo desde o início de 2011. Para que o Brasil tire proveito de sua megabiodiversidade, esse processo deve continuar aberto e de forma profissional sob o risco de polarizações ideológicas. Há um vasto horizonte de oportunidades com possibilidade concreta de resultados positivos para todos nós. A ratificação até agora só foi feita por cinco países e enquanto não completar 50 o protocolo não entra em vigor.
Nos próximos textos vou escrever os desdobramentos desses assuntos a partir da experiência de observador da conferência de Biodiversidade aqui na Índia. Vou também descrever um pouco como o setor privado está incorporando essa agenda uma vez que estou representando o movimento empresarial pela biodiversidade Brasil em algumas ocasiões.