terça-feira, 26 de outubro de 2010

03 | As negociações



Os temas aqui em Nagoya negociados assim como os interesses específicos de cada nação só podem ser completamente entendidos a partir de uma perspectiva histórica. Outra questão fundamental para se entender a posição de cada pais é a velha divisão entre os desenvolvidos e os em desenvolvimento. Ricos e pobres. Norte e sul. Tal divisão ganha traços ainda mais definidos numa negociação sobre a biodiversidade, uma vez que é no sul, geralmente pobre, onde se encontra a maior parte da diversidade biológica do planeta.

Diferentemente então de outras negociações multilaterais, como por exemplo comércio ou mesmo segurança internacional, em biodiversidade os países mais pobres têm uma força considerável.

É desses países, compartilhada pelo Brasil e por outros emergentes, a principal demanda nessa conferencia:
a adoção de um protocolo legalmente vinculante sobre o acesso aos recursos genéticos e a repartição justa e equitativa dos benefícios associados ao seu uso (ABS pela sigla em inglês Access and Benefit Sharing).

Além desse tema tão caro aos países em desenvolvimento, o sucesso ou fracasso das negociações em Nagoya também dependem de um acordo em outras duas frentes: a adoção de um novo plano estratégico global para biodiversidade e de metas numéricas para o aumento do aporte de recursos financeiros.

Abaixo, procuro explicar a importância de cada um desses temas, suas peculiaridades e o status das negociações:

a)
ABS: enquanto as grandes e simbólicas espécies do reino animal melhor simbolizam a biodiversidade, são os invisíveis e valiosos recursos genéticos que mais disputa causam há quase uma década de negociações. Não é à toa. Setores fundamentais de qualquer sistema econômico, como por exemplo o farmacêutico, agrícola, biotecnológico e tantos outros, dependem fundamentalmente de pesquisas e uso de recursos genéticos para o desenvolvimento de seus produtos. Veladamente, os países que sediam as grandes empresas multinacionais e institutos de pesquisa nessa área temem que um acordo internacional que estipule regras claras para o uso desses recursos interfira na forma lucrativa como fazem negócios mundo afora. Principalmente, porque não há nada hoje que os force a repartir com os países de origem os benefícios econômicos e tecnológicos de tais empreendimentos.

Por outro lado, um acordo que impeça a inovação e restrinja pesquisas importantes, ao tornar os métodos extremamente burocráticos, pode ser prejudicial para todo o mundo.

A negociação de tal protocolo ganha então uma complexidade tremenda:

i) o que fazer no caso dos recursos genéticos que já foram coletados e hoje se encontram em coleções públicas e privadas nos países ricos?
ii) o acordo vale também para os derivados desses recursos genéticos?
iii) como forçar países a cumprir as regras estabelecidas? Cabe punição?
iv) o que fazer numa situação de emergência global, como nos casos das epidemias? Um caso bastante citado é quando a gripe aviária se alastrou pelo mundo. A Indonésia forneceu os genes do vírus. Laboratórios ocidentais desenvolveram vacinas a partir desses materiais e lucraram bilhões revendendo-as aos países pobres.
v) como incorporar de forma justa o acúmulo de conhecimento de milhares de anos dos povos tradicionais, resguardando o consentimento prévio dessas populações quanto ao acesso aos recursos de seus territórios?

b)
Plano Estratégico: o único consenso que existe entre todos os países aqui em Nagoya é que as metas de 2010 para a biodiversidade não foram atingidas. A diversidade de genes, espécies e ecossistemas continua a declinar, enquanto as pressões sobre a biodiversidade continuam constantes ou aumentando, agravadas agora pela mudanças climáticas e aumento populacional.

A partir dessa constatação, os países aqui se esforçam para aprovar um plano estratégico que trás uma visão para 2050, em que
“a biodiversidade é valorizada, conservada, restaurada e usada de forma sábia. Enquanto os serviços ecossistêmicos são mantidos, sustentando um planeta saudável e entregando os benefícios essenciais a todos os povos”.

A missão do plano vem em seguida, mas ainda existe muito debate entre três opções. Uma mais e outras duas menos ambiciosa; e ligada ou não com a disponibilidade de recursos financeiros necessários para atingi-la. Como é a missão que acaba sendo comunicada ao público em geral, existe um grupo específico de negociadores e países somente para definir esse parágrafo.

Na sequência têm-se cinco objetivos estratégicos acompanhados de suas metas respectivas. O horizonte temporal dessas metas é 2020.

Por mais vago que algumas dessas metas possam parecer, em conjunto elas atacam as causas da perda de biodiversidade, como modos de consumo, impactos do comércio internacional e mudanças demográficas.

A meta 3 do texto em negociação, por exemplo, fala em eliminar até 2020 os subsídios governamentais que têm impacto negativo sobre a biodiversidade. Estima-se que somente nos países desenvolvidos os subsídios para pesca industrial, agricultura intensiva e indústria fóssil atinja 500 bilhões de dólares ao ano.
Um plano, mesmo que vago, é melhor do que nenhum. Sem plano os lideres mundiais sinalizarão que sabem que estamos acabando com o que sustenta a vida no planeta mas que isso não tem importância. Adivinha que vai pagar a conta?

c)
Aumento dos Recursos Financeiros: para atingir todas as metas que serão estabelecidas nesse novo plano estratégico é necessário aumentar em até 100 vezes a quantidade atualmente destinada à conservação e ao uso sustentável da biodiversidade. Estima-se que são necessários recursos da ordem US$ 300 bilhões ao ano. No cenário atual, no qual a maior parte dos governos está quebrada, fica difícil que esse comprometimento seja de fato realizado. Daí entra-se num exercício “ovo-galinha” nas negociações das metas e recursos financeiros. Os países pobres não aceitam metas ambiciosas sem o direto comprometimento de transferência de recursos por parte dos países ricos.

Felizmente está claro que não só de transferências internacionais essas quantias serão garantidas. Muitas discussões e propostas em torno de modelos inovadores de financiamento estão ganhando corpo aqui em Nagoya, como por exemplo: i) pagamento por serviços ambientais, ii) um novo mecanismo chamado “Green Development Mechanism”, que envolveria em larga escala a participação do setor privado, iii) REDD+, e iv) estratégias de mobilização de recursos dentro de cada país.

De qualquer modo, é fundamental que países preservem no documento final a menção de metas numéricas em relação à mobilização de recursos financeiros. Só assim é possível o acompanhamento do seu cumprimento por todos os outros atores envolvidos.

Confuso, lento e às vezes distante da realidade. É assim o processo da ONU em sua melhor forma. Ao menos, transparente e participativo.